03/05/2016 ( Caderno:
Matérias )
Lama txica vazada de barragem de rejeitos de
minrio de ferro pode ter causado desaparecimento
de espcies como gua-viva rara,apontam
pesquisadores da USP
Alm de diversas espcies j conhecidas, o desastre ambiental de Mariana, em Minas Gerais, pode ter afetado uma enorme variedade de outros organismos marinhos ainda pouco estudados que ocorriam em regies atingidas pela lama txica vazada da barragem de rejeitos de minrio de ferro, que rompeu no incio de novembro.
Um desses organismos a extremamente rara gua-vivaKishinouyea corbini Larson, cuja nica populao estabelecida e conhecida no Atlntico Sul Ocidental ocorria na Praia dos Padres, em Aracruz, no Esprito Santo, atingida pela pluma de lama.
Essa espcie emblemtica da perda de informao sobre diversos animais da fauna marinha ainda pouco estudados, ou at mesmo totalmente desconhecidos, que um evento catastrfico como o desastre ambiental de Mariana pode ter causado, disse Antonio Carlos Marques, professor do Instituto de Biocincias (IB) e diretor do Centro de Biologia Marinha (CEBIMar) da Universidade de So Paulo (USP), Agncia FAPESP.
Marques e Luclia Souza Miranda, ps-doutoranda no IB-USP comBolsa da FAPESP, publicaram artigo na revistaBIOTA Neotropica em que chamam a ateno para os impactos ocultos do desastre ambiental de Mariana sobre a fauna marinha brasileira, destacando o exemplo daK. corbini.
Essa gua-viva muito peculiar vive com a boca para cima capturando alimento, enquanto a maioria das guas-vivas tem a boca para baixo. Ela tambm no nada, vivendo presa ao assoalho marinho ou a algum outro organismo por meio de um pednculo. AK. corbini foi a primeira espcie da classe Staurozoa registrada no Brasil, exatamente na costa do Esprito Santo.
A classe Staurozoa, proposta por Marques h mais de 10 anos, considerada muito importante na evoluo do filo Cnidria que inclui as medusas, anmonas-do-mar, caravelas-do-mar, coraismoles e duros e hidras de gua doce e um dos primeiros grupos de animais marinhos a surgir nos oceanos.
Segundo Marques, um animal semelhante K. corbini pode ter sido o primeiro tipo de medusa dos cnidrios. A classe Staurozoa relativamente pequena, composta por cerca de 50 espcies com distribuio muito concentrada em guas polares e temperadas.
H duas espcies dessa classe de animais marinhos que ocorrem em reas tropicais do Atlntico Sul Ocidental, uma das quais aK.corbini, disse.
H registros no Caribe dessa espcie de gua-viva difcil de encontrar e que muitas vezes se camufla em algas marinhas, mais especificamente em Porto Rico e no Mxico.
No Brasil, h um registro deK.corbini no arquiplago de Abrolhos, na Bahia, mas que nunca mais foi encontrado. E h suspeitas de que parte daquela rea tambm pode ter sido igualmente impactada pelo desastre ambiental de Mariana.
A nica populao dessa espcie de gua-viva conhecida no Atlntico Sul Ocidental estava situada no litoral do Esprito Santo.
Por ser parte de um grupo que vive majoritariamente em guas frias, com rarssimas espcies em guas tropicais, a populao dessa espcie de gua-viva encontrada no litoral do Esprito Santo teria uma histria evolutiva mpar, relacionada a sua fisiologia, ecologia e interaes com outros organismos em um ambiente tropical, diferente do ambiente ancestral onde se originou e se desenvolveu, disse Marques.
Todas essas particularidades dessa populao de gua-viva, que poderiam trazer informaes importantes e nicas sobre a qumica, a morfologia e o contexto ecolgico de todo o grupo e nos auxiliar a aumentar a compreenso sobre a vida em ambientes com diferenciao ecolgica afetados pelas mudanas climticas, podem ter sido perdidas, estimou.
A identidade molecular desses animais encontrados no litoral do Esprito Santo foi recm-estudada por Miranda em sua pesquisa de doutorado, tambm realizada comBolsa da FAPESP. Mas ainda no havia informaes sobre suas relaes trficas (entre presa e predadores).
Alm disso, ainda no se sabia se as populaes eram isoladas ou interdependentes, o que torna ainda mais difcil estimar os efeitos sobre os animais de um evento da magnitude do desastre ambiental de Mariana, apontam os pesquisadores.
como se diversas pginas cruciais para a compreenso de um livro tivessem sido arrancadas e seremos obrigados, a partir de agora, a l-lo sem ter acesso a esses trechos essenciais, comparou Marques.
Levantamento de danos
De acordo com Marques, que realizou um estudo em parceria com colegas da Argentina,apoiado pela FAPESP, e coordena umProjeto Temticosobre padres e processos de diversificao de cnidrios, ainda no possvel estimar os impactos do desastre ambiental de Mariana na populao de gua-vivaK.corbini encontrada no litoral capixaba.
Isso porque ainda continuam ocorrendo derramamentos espordicos de lama, que j percorreu 650 quilmetros ao longo da bacia do rio Doce considerada uma das mais importantes bacias hidrogrficas da Amrica do Sul , causando uma enorme mortalidade de sua biota, em sua maioria enterrada e sufocada pelos sedimentos, apontam os pesquisadores.
evidente que muitos animais, algas e plantas vo desaparecer em razo da formao de depsitos espessos de sedimentos porque no estavam preparados para lidar com catstrofes dessa magnitude. O desastre ambiental de Mariana equivaleria a catstrofes como erupes de vulces em pequenas ilhas, que dizimam uma extensa gama de habitantes das vizinhanas, comparou Marques.
Segundo ele, ainda no possvel avaliar a real magnitude do desastre ambiental de Mariana porque o processo ainda no foi concludo. Por isso, ser necessrio fazer um acompanhamento da regio atingida por muitos anos e fazer buscas e comparaes ao longo do tempo para compreender a resilincia e a recuperao no s de processos e do ambiente marinho, mas tambm do ambiente continental.
A regio do litoral do Esprito Santo atingida pela lama de Mariana apresentava uma grande diversidade de cnidrios, com grandes populaes de diferentes espcies, disse o diretor do CEBIMar.
O substrato marinho da regio era tomado por algumas espcies chamadas de construtoras como coraismoles, algas e coralneas, como os rodolitos[algas calcrias] , que acabam por criar ambientes peculiares para a existncia de outras espcies, explicou.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renovveis (Ibama) e com o Instituto Chico Mendes de Conservao da Biodiversidade (ICMBio), a lama j atingiu uma rea total de quase 7 mil quilmetros quadrados do litoral capixaba e j pode ter chegado ao arquiplago de Abrolhos.
Vnhamos acompanhando os cnidrios naquela regio e realizando estudos de genmica e transcriptmica do grupo para analisar como o DNA desses animais estava respondendo quele ambiente em comparao com os animais de guas frias. Mas por ora todas essas possibilidades de estudo foram perdidas talvez permanentemente, lamentou Marques.
Na avaliao dele, o desastre ambiental de Mariana no um fato isolado, mas uma consequncia de como a sociedade brasileira vem tratando o ambiente e a conservao marinha.
O desastre ambiental de Mariana demonstra uma desconsiderao com a sustentabilidade e a conservao de ambientes que sero vitais no futuro e decorrente de uma poltica ambiental que precisa ser muito melhorada em todos os nveis, afirmou.
O artigoHidden impacts of the Samarco mining waste dam collapse to Brazilian marine fauna an example from the staurozoans (Cnidaria) (doi: 10.1590/1676-0611-BN-2016-0169), de Marques e Miranda, pode ser lido na revistaBIOTA Neotropica emwww.biotaneotropica.org.br/v16n2/en/abstract?point-of-view+bn00216022016.