24/05/2018 ( Caderno:
Seção Saúde )

Resultados publicados naCardiovascular Researchindicam que efeito est
relacionado com ativao da enzima ALDH2, responsvel
por livrar o organismo de molculas txicas pertencentes
classe dos aldedos
H pelo menos 20 anos estudos tm mostrado que o consumo moderado de lcool pode ter efeito cardioprotetor em grande parte das pessoas, mas ainda no se sabia ao certo por qu.
Dados de uma pesquisa conduzida no Instituto de Cincias Biomdicas da Universidade de So Paulo (ICB-USP) indicam que essa proteo pode estar relacionada com a ativao de uma enzima mitocondrial chamada ALDH2 (aldedo desidrogenase-2), que ajuda a eliminar do organismo tanto os subprodutos txicos gerados pelo metabolismo do lcool como tambm um tipo de molcula reativa produzido nas clulas cardacas quando estas sofrem um dano importante como o causado pelo infarto, por exemplo.
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Nossos dados sugerem que a exposio moderada ao etanol causa um pequeno estresse nas clulas do corao, no suficiente para mat-las. Como consequncia, ocorre uma reorganizao no sinal intracelular e a clula cardaca acaba criando uma memria bioqumica contra estresse, tambm chamada de precondicionamento. Quando a clula submetida a um estresse maior, j sabe como lidar, disse Julio Cesar Batista Ferreira, professor do Departamento de Anatomia do ICB-USP e coordenador da pesquisaapoiada pela FAPESP.
O trabalho vem sendo feito em parceria com cientistas da Stanford University, nos Estados Unidos. Resultados recentes, obtidos durante o ps-doutorado de Cintia Bagne Ueta, foram publicados na revistaCardiovascular Research.
Para estudar os efeitos cardioprotetores do lcool em nvel celular, os pesquisadores simularam uma condio semelhante ao infarto em coraes de camundongo mantidos vivos em um sistema artificial. Nesse modelo, chamadoex vivo, o rgo permanece batendo fora do corpo durante vrias horas, sendo alimentado por uma soluo rica em nutrientes e oxignio.
Os cientistas ento simulam uma condio clnica conhecida como isquemia e reperfuso interrompendo o fluxo nutritivo para o corao durante 30 minutos. Quando a soluo nutritiva volta a correr, o rgo recomea a bater lentamente e, aps uma hora, os pesquisadores conseguem avaliar o tamanho do dano. Em mdia, nesse modelo, cerca de 50% das clulas cardacas morrem caso no seja feito nenhum tipo de interveno.
Acreditava-se, antigamente, que o dano principal era consequncia do perodo sem oxignio. Mas estudos mostraram que, durante a isquemia, as clulas mudam seu metabolismo e entram em uma espcie de estado dormente. Quando a artria desobstruda [reperfuso], o tecido recebe uma enxurrada de sangue com nutrientes e oxignio e acaba ocorrendo um colapso metablico nas clulas, explicou Ferreira.
Em resposta ao estresse, as clulas cardacas comeam a produzir grandes quantidades de uma molcula reativa conhecida como 4-HNE (4-hydroxy-2-nonenal), pertencente classe qumica dos aldedos. Em excesso, essa substncia txica comea a destruir estruturas celulares essenciais.
A enzima mitocondrial ALDH2 a principal responsvel por livrar o organismo dos aldedos acumulados tanto o 4-HNE das clulas cardacas em estresse quanto o acetaldedo resultante da quebra da molcula de etanol no fgado aps uma noite de bebedeira.
No entanto, em trabalhos anteriores, o grupo de Ferreira em parceria com pesquisadores de Stanford coordenados por Daria Mochly-Rosen mostraram que, durante o processo de isquemia e reperfuso, a atividade da enzima ALDH2 era significativamente reduzida. Esses achados foram divulgados na revistaScience Translational Medicinee noCirculation Journal.
A quantidade de 4-HNE se torna to grande dentro da clula cardaca que a molcula acaba atacando a prpria enzima responsvel pelo seu metabolismo, contou Ferreira.
Em nosso novo estudo, observamos que no corao exposto ao etanol antes do processo de isquemia e reperfuso a atividade da ALDH2 se manteve igual de um rgo que no sofreu injria. Acreditamos que o estresse causado pelo etanol em dose moderada deixa uma memria e, assim, a clula aprende a manter a enzima ALDH2 mais ativa, acrescentou.
Grupos de estudo
Cinco grupos de estudos foram montados com o objetivo de esmiuar os mecanismos por trs do efeito protetor observado. No primeiro, considerado como grupo-controle, os coraes no sofreram nenhum tipo de dano e no receberam nenhum tratamento ou interveno. No segundo grupo, os coraes foram apenas submetidos isquemia e reperfuso e, como consequncia, perderam em torno de 50% das clulas.
No terceiro grupo, antes de induzir o dano, os pesquisadores expuseram durante 10 minutos os rgos extrados de camundongos machos a uma dose de etanol equivalente a duas latas de cerveja ou duas taas de vinho para um humano mdio do sexo masculino. A dose foi ajustada de acordo com a massa dos animais.
Procuramos seguir a recomendao da Organizao Mundial da Sade (OMS), que de at uma dose por dia para mulheres [18 gramas de lcool] e at duas doses para homens. No caso de camundongos, foi algo em torno de 50 milimolar, explicou Ferreira.
Os rgos foram depois lavados por outros 10 minutos para retirar o excesso de lcool e, em seguida, tiveram o fluxo nutritivo interrompido, como ocorreu com o grupo dois. Na anlise feita cerca de uma hora aps a reperfuso, apenas 30% das clulas haviam morrido, ou seja, o dano foi reduzido em quase 60% na comparao com o grupo dois. Alm disso, os cientistas observaram que a atividade de ALDH2 estava duas vezes maior que no grupo no tratado e em nvel equivalente ao do grupo-controle, que no sofreu dano.
No quarto grupo de estudo, alm do tratamento com etanol, os coraes foram expostos a uma droga capaz de inibir a atividade de ALDH2. Nesse caso, o ndice de morte celular subiu de 50% para 80%, confirmando que a proteo promovida pelo etanol de fato dependente da ao da enzima.
J no ltimo grupo experimental foram usados coraes de camundongos que apresentam uma mutao no gene codificador da ALDH2, que reduz a atividade da enzima em quase 80%. Como explicou Ferreira, os animais so modificados geneticamente para simular essa mutao, que muito comum na populao oriental e afeta quase 600 milhes de pessoas no mundo.
Nesse grupo, quando expusemos os coraes ao etanol, o dano causado pela isquemia e reperfuso foi aumentado. O ndice de morte celular passou de 50% para 70%. Porm, quando tratamos os rgos desse grupo com uma droga experimental capaz de ativar a ALDH2 conhecida como Alda-1 o ndice de morte celular caiu para 35%, contou Ferreira.
Segundo o pesquisador, no foi observado benefcio ao tratar com a Alda-1 os coraes de animais sem a mutao na enzima ALDH2 expostos ao etanol. Isso sugere que tanto a droga experimental quanto o lcool esto atuando no mesmo mecanismo molecular para ativar ALDH2, disse.
A molcula Alda-1 j passou pela primeira fase de ensaios clnicos nos Estados Unidos, nos quais se mostrou segura para uso em humanos saudveis. Deve ter incio em breve uma nova fase de testes onde a substncia ser oferecida a portadores de cardiopatias (leia mais emhttp://agencia.fapesp.br/20916).
Depende do DNA
Na avaliao de Ferreira, possvel fazer um paralelo entre o consumo regular de pequenas quantidades de lcool por seres humanos e os resultados observados nos coraes de camundongos tratados em laboratrio com etanol.
Mas tudo depende do que a pessoa carrega no DNA, ressaltou. O acetaldedo resultante do metabolismo do etanol pode ser protetor em pequenas quantidades para a maioria da populao, mas tambm pode maximizar o dano do infarto em um indivduo com a mutao no gene da ALDH2. Essas pessoas so fceis de serem identificadas, pois com apenas um copo de cerveja ficam com o rosto vermelho, dor de cabea e no ganham resistncia ao lcool com o tempo, disse.
O dano ao corao tambm pode ser agravado caso o lcool seja ingerido em quantidades elevadas, alertou Ferreira, pois isso resulta na produo excessiva de acetaldedo e torna o trabalho de limpeza promovido pela ALDH2 ainda mais difcil.
O grupo tratado com a droga inibidora da ALDH2 [no qual o ndice de morte celular chegou a 80%] mimetiza o que aconteceria em um caso de consumo excessivo de lcool. O difcil estabelecer a dose segura para cada indivduo, pois h muitas variveis que afetam o metabolismo, disse o pesquisador.
O grupo do ICB-USP tenta agora entender como a presena do acetaldedo resultante do metabolismo do lcool na clula cardaca cria a memria que mantm a ALDH2 mais ativa. A ideia seria desenvolver uma droga capaz de mimetizar o efeito benfico do etanol sem expor os indivduos a riscos entre eles o desenvolvimento de dependncia qumica.
A molcula Alda-1 um possvel candidato. Entretanto, necessrio dar continuidade aos estudos de segurana e eficcia em humanos, comentou Ferreira.
O artigoCardioprotection induced by a brief exposure to acetaldehyde: role of aldehyde dehydrogenase 2, de Cintia Bagne Ueta, Juliane Cruz Campos, Rud Prestes e Albuquerque, Vanessa Morais Lima, Marie-Hlne Disatnik, Anglica Bianchini Sanchez, Che-Hong Chen, Marisa Helena Gennari de Medeiros, Wenjin Yang, Daria Mochly-Rosen e Julio Cesar Batista Ferreira, est publicado emhttps://doi.org/10.1093/cvr/cvy070.