13/07/2023 ( Caderno:
Seção Saúde )

Pesquisador da USP descreve na revista Nature Reviews Endocrinology os mecanismos envolvidos
na chamada “reprogramao metablica”, por meio dos quais alteraes
nutricionais da gestante modulam hormnios secretados pelas clulas adiposas do beb.
Desse processo pode resultar o surgimento de diabetes, obesidade,
hipertenso e colesterol alto na fase adulta (foto: Freepik)
Alteraes no tecido adiposo materno durante o desenvolvimento fetal, provocadas tanto por carncia quanto por excesso de ingesto alimentar, podem levar a doenas metablicas na fase adulta. Esse o alerta de um artigo publicado na revista Nature Reviews Endocrinology, que descreve os inmeros mecanismos envolvidos em um conceito conhecido como programao metablica – em que clulas do tecido adiposo (adipcitos) regulam a exposio a nutrientes, trazendo consequncias de longo prazo.
"So dois casos opostos, mas que seguem mecanismos idnticos: a reprogramao metablica. Filhos de mulheres que passaram fome na gravidez tendem a nascer com baixo peso e desenvolver hipertenso, alteraes na resposta ao estresse, problemas cardacos, maior propenso a diabetes e aumento da resistncia insulnica. Na outra ponta, filhos de mulheres com obesidade gestacionaltendem a nascer com alto peso, mas tambm a apresentar problemas metablicos na fase adulta", explica Jos Donato Jnior, professor do Instituto de Cincias Biomdicas da Universidade de So Paulo (ICB-USP).
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No artigo, a partir de diferentes estudos – alguns deles conduzidos por seu grupo de pesquisa –, o pesquisador junta as peas para esclarecer a intrincada relao entre os adipcitos e a reprogramao metablica. O trabalho apoiado pela FAPESP, por meio de um Projeto Temtico.
O entendimento desse passo a passo pode auxiliar a estabelecer estratgias futuras para a preveno e o tratamento de doenas metablicas, como diabetes, obesidade, hipertenso e dislipidemia (colesterol alto). "Entender esses mecanismos possibilita que intervenes sejam feitas, pois a manipulao de hormnios do tecido adiposo pode ser o embrio de futuras terapias. Veja o caso do diabetes gestacional, por exemplo: a despeito de sua alta prevalncia, ainda no existe uma terapia. A indicao controle da dieta e, se no for suficiente, administrar insulina, o que extremamente adipognico [favorece a formao de novos adipcitos] para a me e o beb. A responsabilidade fica muito em cima das mes. Parece que no damos a mesma ateno para os cuidados maternos que damos a outras doenas", avalia o pesquisador.
Dois lados de uma moeda
Donato explica que, por muitos anos, o tecido adiposo – as famosas gordurinhas – foi considerado um mero depsito de energia, onde a gordura era armazenada para ser usada quando necessrio. Essa viso, no entanto, comeou a mudar com os estudos que descobriram que o tecido adiposo produz hormnios importantes para o controle do metabolismo, como a leptina e a adiponectina. A essa classe de compostos deu-se o nome de adipocinas. So essas substncias que fazem a intermediao entre a sade da gestante e o desenvolvimento dos filhos, sobretudo em uma rea de pesquisa chamada “origens desenvolvimentistas da sade e doena” (DOHaD, na sigla em ingls).
A relao entre alimentao materna e doena dos filhos quando adultos foi observada pela primeira vez durante a chamada "fome holandesa", que ocorreu na Segunda Guerra Mundial, aps o exrcito nazista cortar o suprimento de alimentos para o pas.
Nesses primeiros estudos, sugeriu-se que a carncia alimentar das mes levava a um atraso no desenvolvimento dos filhos, como resultado de um processo adaptativo ao baixo nvel de nutrientes que recebiam durante a fase fetal e o incio da vida.
A linha de pesquisa, que comeou com estudos sobre desnutrio, avanou nas ltimas dcadas para a obesidade. "Vamos supor que, anos depois, esse mesmo indivduo que passou por uma programao metablica comece a ter acesso a alimentos altamente palatveis, ultraprocessados e cheios de calorias. O organismo que estava adaptado para lidar com a escassezse depara com o excesso. Talvez isso ajude a explicar a epidemia de obesidade que temos atualmente", diz.
De acordo com Donato, estudos mais recentes tm mostrado tambm que a obesidade materna, a diabetes gestacional e o ganho de peso excessivo durante a gravidez produzem no feto um efeito parecido com o da desnutrio, por tambm afetar a sensibilidade e os nveis de leptina e adiponectina circulantes na me e no feto. "Alguns dos hormnios ligados ao tecido adiposo esto baixos ou apresentam alterao em sua ao, como o caso da leptina, que promove a adaptao do gasto de energia relacionada escassez ou ao excesso", comenta.
Donato ressalta no texto que a leptina provavelmente programa o metabolismo do beb no incio da vida, controlando o desenvolvimento de neurnios que regulam o balano energtico, induzindo mudanas permanentes na preferncia por alimentos hiperpalatveis e diminuindo o gasto energtico.
J os efeitos da adiponectina ocorrem na me e na placenta, regulando a exposio fetal a nutrientes e, consequentemente, o crescimento e a nutrio fetal, trazendo consequncias de longo prazo para o metabolismo e a predisposio a doenas.
o que os cientistas chamam de mudanas epigenticas, ou seja, modificaes bioqumicas nas clulas ocasionadas por estmulos ambientais que promovem a ativao ou o silenciamento de genes sem provocar mudanas no genoma do indivduo. No caso das adipocinas, elas so capazes de alterar a capacidade de alguns genes serem mais ou menos expressos e tambm fatores de transcrio que, por sua vez, afetam genes relacionados a como as protenas interagem com o DNA.
"Preencher essa lacuna de conhecimento particularmente relevante no que diz respeito s alteraes epigenticas em rgos que controlam o metabolismo, como o crebro, o tecido adiposo, o fgado e os msculos. Entender e identificar os mecanismos especficos afetados pela sinalizao de adipocinas que levam programao metablica so de fundamental interesse para orientar o desenvolvimento de estratgias futuras para prevenir e tratar a obesidade, diabetes e suas inmeras comorbidades", afirma o pesquisador.
O artigo Programming of metabolism by adipokines during development pode ser lido em: www.nature.com/articles/s41574-023-00828-1.