24/09/2019 ( Caderno:
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Em artigo publicado na PNAS, pesquisadores da USP, da Unesp e do ICMBio alertam
para a necessidade de um manejo agrcola mais favorvel manuteno
da vida selvagem (Em sentido horrio: Gato-do-mato-pequeno [Leopardus guttulus];
Veado [Mazama sp.]; Tatu-de-rabo-mole [Cabassous tatouay];
Cutia [Dasyprocta leporina] - foto: ICMBio/CENAP)
Nos arredores de Campinas e de Botucatu, cidades do interior de So Paulo, gatos-maracaj (Leopardus wiedii) que vivem em reas de floresta fragmentada pela agropecuria se alimentam de presas que habitam os canaviais vizinhos, incluindo, por exemplo, aves e pequenos roedores silvestres no cardpio.
Outros mamferos, como o herbvoro pre (Cavia aperea) ou o onvoro cachorro-do-mato (Cerdocyon thous), tambm tm a dieta influenciada pela matriz agropecuria da regio, embora vivam em rea de vegetao nativa. Muitas vezes, por uma questo de sobrevivncia, so forados a buscar seu alimento em plantaes de milho, cana-de-acar ou pastagens. Cada qual a seu modo, suuaranas (Puma concolor), capivaras (Hydrochoerus hydrochaeris), veados (Mazama sp.), jaguatiricas (Leopardus pardalis) e mos-peladas (Procyon cancrivorus) tambm sofrem alteraes na dieta, em comparao com osanimais que vivem em reas conservadas, que formam grandes blocos florestais.
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Os exemplos, descritos em artigo publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) , confirmam a hiptese de que, alm de afetar negativamente a riqueza, a diversidade e a abundncia dos animais, a matriz agropecuria tambm impacta a alimentao e o uso do hbitat de mamferos silvestres que vivem em reas de floresta fragmentada, prximas a lavouras e pastagens.
O estudo, realizado por pesquisadores da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de So Paulo (Esalq-USP), do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena-USP), da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e do Instituto Chico Mendes de Conservao da Biodiversidade (ICMBio), teve o apoio da FAPESP, por meio de um projeto coordenado por Katia Maria Paschoaletto Micchi de Barros Ferraz (Esalq-USP), e da Fundao Boticrio.
“Os remanescentes florestais e a matriz agropecuria no so apartados, existe uma interface entre essas reas. J era esperado que os animais precisassem buscar alimento nas plantaes, mas essa prtica ainda no havia sido quantificada, como foi agora. importante ressaltar que no se trata da dieta ideal, mas de uma questo de sobrevivncia”, disse Marcelo Magioli , bolsista de doutorado da FAPESP e primeiro autor do artigo.
De acordo com o estudo, o impacto causado pela agropecuria nos esforos de conservao esto relacionados no somente ao desmatamento e fragmentao de florestas, mas tambm s alteraes que esse processo induz na alimentao de animais silvestres. Os pesquisadores apontam a necessidade de um gerenciamento adequado dos ambientes modificados pelo homem para amparar a sobrevivncia da vida selvagem.
“Nossos resultados mostram a necessidade de um manejo agrcola mais favorvel para esses animais e enfatizam a importncia do Cdigo Florestal e da manuteno das Reservas Legais e reas de Preservao Permanente”, disse Ferraz.
Registros da alimentao
Para medir quanto a alimentao desses mamferos tem sido alterada por influncia da matriz agropecuria, o grupo de pesquisadores usou a anlise de istopos estveis de carbono e de nitrognio no pelo dos animais. O mtodo, muito comum em estudos trficos de animais marinhos, permite identificar o tipo de alimentao consumida em um intervalo de aproximadamente trs meses – no caso de amostras de pelo –, alm de identificar em que ponto da cadeia alimentar o indivduo se encontra.
Pelo fato de muitos desses animais estarem em risco de extino (o gato-maracaj, por exemplo), os pesquisadores fizeram uso de tcnicas no invasivas, como armadilhas de pelo e coleta de amostras de fezes em quatro regies do Estado de So Paulo – duas reas prximas de lavouras, em Campinas e Botucatu, e duas reas conservadas, na Serra do Mar e na Serra de Paranapiacaba (SP).
No estudo, foram coletadas amostras de 29 espcies de mamferos. Do total, 194 amostras eram provenientes de indivduos que habitam as reas modificadas e outras 126 dos que vivem em blocos florestais.
“Por meio dos estudos anteriores, que usaram colares GPS e armadilhas fotogrficas, j era sabido que os animais percorriam essas reas. Porm, a anlise de istopos estveis permitiu saber em que local eles estavam se alimentando e a importncia dessas fontes alimentares na dieta dos animais”, disse Magioli.
To perto e to longe
De acordo com os pesquisadores, enquanto 34,5% dos indivduos baseados em fragmentos de florestas de reas modificadas se alimentam exclusivamente de recursos agrcolas, 67,5% dos animais que habitam grandes blocos florestais se alimentam principalmente de recursos florestais.
“H uma diferena muito grande na alimentao desses dois grupos de mamferos. Como havia uma composio de espcies diferente entre os dois tipos de reas, agrupamos os animais de acordo com o tipo de alimentao: carnvoros, onvoros e herbvoros, frugvoros, insetvoros”, disse Magioli Agncia FAPESP.
Na comparao, frugvoros e insetvoros consumiam os mesmos recursos, independentemente de onde viviam. Herbvoros e onvoros que habitavam fragmentos florestais foram os mais impactados, estando mais propensos a consumir recursos agrcolas. J os carnvoros nesse ambiente vizinho s lavouras consumiam uma proporo relativamente alta de presas que se alimentavam de recursos agrcolas.
“Podemos concluir que, pelo fato de o ambiente ter uma cobertura florestal reduzida, os fragmentos pequenos acabam sendo insuficientes para fornecer s espcies os recursos de que necessitam”, disse.
Outro achado da pesquisa est relacionado ao efeito dos fertilizantes orgnicos nos animais, sobretudo nos herbvoros, e de tcnicas como a queima da cana, que afetam o ciclo de nitrognio do solo e, consequentemente, as plantas que o animal consome.
“Notamos diferena nos valores de istopos de nitrognio no pelo dos animais que habitavam a floresta fragmentada. Por consumirem recursos da matriz agrcola, o valor de nitrognio aumentado, assim como ocorre no solo, por exemplo. Como normalmente o valor de nitrognio sobe da base para o topo da cadeia alimentar, ficou mais difcil explicar a ordem da cadeia alimentar para essas reas modificadas, que bastante diferente das reas preservadas”, disse Magioli.
O artigo Human-modified landscapes alter mammal resource and habitat use and trophic structure (doi: 10.1073/pnas.1904384116), de Marcelo Magioli, Marcelo Zacharias Moreira, Renata Cristina Batista Fonseca, Milton Cezar Ribeiro, Mrcia Gonalves Rodrigues e Katia Maria Paschoaletto Micchi de Barros Ferraz, pode ser lido em https://www.pnas.org/cgi/doi/10.1073/pnas.1904384116.