08/01/2021 ( Caderno:
saude )

Especialistas ouvidos pela Agncia FAPESP apontam fatores que podem estar relacionados com o crescimento do nmero de casos da doena na capital amazonense, onde foi decretado estado de emergncia pelos prximos seis meses
Em agosto de 2020, quando a cidade de Manaus (AM) registrava trs meses de queda acentuada nos casos de COVID-19 mesmo com as escolas e o comrcio reabertos, parte dos especialistas brasileiros levantou a hiptese de que o limiar da imunidade coletiva ao vrus SARS-CoV-2 teria sido alcanado na regio – ainda que os inquritos sorolgicos apontassem uma soroprevalncia inferior a 30% em todo o Norte do pas.
A hiptese ganhou fora no ms seguinte, em setembro, quando pesquisadores da Universidade de So Paulo (USP) e colaboradores divulgaram um artigo, feito com amostras de bancos de sangue, que estimava por meio de modelagem matemtica que a soroprevalncia na capital amazonense seria de 66%, ou seja, estaria perto do limiar calculado no incio da pandemia pela frmula clssica usada na epidemiologia. Em dezembro, quando saiu a verso final do estudo coordenadopela professora Ester Sabino na revista Science, a estimativa era de que 76% dos manauaras j tinham imunidade contra o novo coronavrus. Ento como explicar a segunda onda de casos que levou a um novo colapso do sistema de sade e obrigou o prefeito a decretar, no dia 5 de janeiro, estado de emergncia pelos prximos seis meses?
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Na avaliao de Sabino, como o vrus continua circulando em todo o pas, o nmero de casos voltou a subir quando as pessoas retornaram s atividades normais e continuar crescendo at infectar algo em torno de 95% da populao. “H um entendimento errado do conceito de imunidade de rebanho. Quando o limiar alcanado no significa que a doena vai desaparecer e sim que os casos no vo crescer to rapidamente como na primeira onda. Dificilmente haver um pico como o de abril [de 2020] – a menos que as pessoas j tenham perdido a imunidade e os casos de reinfeco sejam muito mais comuns do que se imagina”, diz a pesquisadora.
O grande problema de Manaus, segundo Sabino, que h poucos hospitais e os leitos de terapia intensiva se esgotam rapidamente. “A situao no deixa de ser preocupante. Ou se triplicam os leitos de UTI ou ser necessrio parar a cidade, pois hoje uma pessoa com apendicite pode morrer por falta de atendimento”, afirma.
Com base em dados da Fundao de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado (AM), o infectologista Jlio Croda afirma que 99% dos novos casos notificados em Manaus so de pessoas que nunca antes tiveram a doena, ou seja, no so reinfeces.
“Nesta segunda onda, a maioria dos pacientes so das classes A e B, que conseguiram se manter em isolamento durante a primeira onda. A prova disso que o sistema privado de sade sofreu esgotamento antes do pblico – diferentemente do que ocorreu em abril de 2020. Aps o relaxamento das medidas de controle, o vrus voltou a circular com maior intensidade e atingiu a parcela da populao que estava mais suscetvel”, afirma Croda, que pesquisador da Fundao Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
Para o infectologista, a soroprevalncia de 76% apontada no estudo divulgado na Science est superestimada. Ele acredita que mais de 50% dos manauras ainda no desenvolveram imunidade contra o SARS-CoV-2.
“Importante ressaltar que o limiar da imunidade de rebanho no um valor fixo. Ele calculado com base na taxa de contgio [Rt, inicialmente estimado entre 2,5 e 3, ou seja, cada infectado transmite o SARS-CoV-2 para outras duas ou trs pessoas], que depende tanto da gentica do vrus quanto das medidas adotadas para conter a disseminao. Recentemente, surgiu uma variante mais transmissvel no Reino Unido e isso impacta tanto o clculo de Rt quanto do limiar da imunidade coletiva”, explica Croda.
Segundo o pesquisador, os cuidados adotados pela populao independentemente do poder pblico – como uso de mscaras, higiene das mos e distanciamento social – ajudam a reduzir a taxa de contgio, fazendo com que o limiar da imunidade coletiva tambm diminua. “Provavelmente foi isso que causou a queda no nmero de casos observada em meados de 2020. Mas, no momento em quehouve o afrouxamento das medidas de controle por parte da populao e do poder pblico, o limiar retornou a patamares prximosde 70%”, avalia.
O epidemiologista Paulo Lotufo, da Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo (FM-USP), considera um “equivoco confiar demais nesse tipo de indicador”. “O grande problema que para calcular o limiar da imunidade de rebanho voc precisa saber o Rt e esse valor uma estimativa – um chute que pode ter um impacto muito grande. A humanidade nunca conseguiu conter uma doena cuja transmisso ocorre entre humanos por imunidade de rebanho. Sarampo e varola, por exemplo, s foram controlados com vacina. No caso da COVID-19, falar em imunidade de rebanho ou em tratamento precoce s atrapalha os esforos de controle da doena, pois as medidas de distanciamento social deixam de fazer sentido para a populao”, diz.
Lotufo tambm afirma ser difcil obter indicadores precisos de Manaus, o que dificulta uma anlise precisa dos fatores que favoreceram a segunda onda de casos de COVID-19. Alm das hipteses j mencionadas, como reinfeco ou a emergncia de uma nova variante mais infecciosa, Lotufo menciona a possibilidade de parte das internaes serde pessoas do interior do Estado do Amazonas que, devido falta de leitos em seus municpios, buscam atendimento na capital – fenmeno conhecido como invaso de internaes hospitalares.
Projeo versus realidade
Entre os especialistas que acreditavam que Manaus havia atingido o limiar da imunidade de rebanho em meados de 2020 est a biomatemtica portuguesa Gabriela Gomes, atualmente professora da University of Strathclyde (Esccia), que desenvolveu um modelo que leva em conta o fato de que os indivduos de uma populao tm diferentes graus de suscetibilidade e de exposio ao vrus. Integram o grupo de Gomes os pesquisadores do Instituto de Cincias Biomdicas (ICB) da USP Marcelo Urbano Ferreira e Rodrigo Corder.
“Quando comparamos as projees de hospitalizao por COVID-19 em Manaus feitas em outubro com o modelo heterogneo com a do modelo homogneo usado pelos pesquisadores do Imperial College London [Reino Unido], notamos que a realidade atual est no meio do caminho entre as duas projees. A curva no to alta como a prevista pelos britnicos e nem to baixa quanto ns estimamos. Creio que isso se deve ao fato de que todos os modelos tm limitaes”, diz Ferreira Agncia FAPESP.
Como se trata de uma doena nova, cuja dinmica comea a ser desvendada, algumas variveis importantes para que os clculos sejam feitos ainda so imprecisas.
“Temos trabalhado com dados de anticorpos para estimar o nmero de casos e, independentemente do ajuste feito, isso problemtico. Sabemos hoje que a quantidade de anticorpos tende a cair com o tempo. Alm disso, indivduos infectados continuam correndo risco de reinfeco, algo que no se sabia no incio. Outra limitao est relacionada ao modo como inserimos nos modelos os parmetros que representam o relaxamento das medidas de controle. So Paulo, por exemplo, mudou da fase vermelha para a amarela entre natal e o ano novo. Tambm no sabemos ao certo at que ponto as pessoas retomaram a vida normal ou seguem respeitando as orientaes de distanciamento. Tudo isso dificulta o trabalho de modelagem – sem falar do surgimento de novas variantes do vrus ainda mais transmissveis”, elenca Ferreira.
O grupo tem estudado no momento como as medidas de restrio de mobilidade podem afetar o coeficientede risco. Isso porque o trabalho de Gomes parte da premissa que as pessoas tm diferentes graus de suscetibilidade e exposio ao vrus tanto por fatores genticos e imunolgicos quanto pelo estilo de vida. “Mas, quando todos passam a ficar confinados em casa, essa diferena entre os indivduos diminui”, explica Ferreira.
Ponto de virada
Divulgada em setembro de 2020, a quarta e mais recente fase do inqurito sorolgico EPICOVID, conduzido em 133 cidades brasileiras por pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), indicava que a epidemia estava em desacelerao na maior parte do pas. Segundo o epidemiologista Pedro Hallal, coordenador da iniciativa, a tendncia comeou a mudar na reta final das eleies municipais. O tamanho do impacto ser medido ainda em janeiro, quando ocorrer a quinta etapa de coletas do inqurito EPICOVID.
“As duas semanas que precederam o segundo turno foram decisivas. Depois vieram as festas de fim de ano e as frias de vero. Os casos cresceram consistentemente pelo menos at meados de dezembro, segundo as estatsticas oficiais, mas ainda no voltamos ao patamar de quando a mdia mvel de bitos era mais de mil por dia. Se a tendncia de crescimento se manter difcil dizer. A histria da pandemia construda diariamente. Tudo depende de como a populao vai se comportar”, diz Hallal.
O pesquisador lamenta a falta de uma poltica nacional efetiva de combate da doena. “Sabemos o que fazer para a curva cair rapidamente: testagem em larga escala e rastreamento de contatos. Isso nunca foi implementado no pas. Se um indivduo diagnosticado hoje, ningum investiga com quais pessoas ele teve contato e isso deveria ser obrigatrio. Outros pases adotam o lockdown quando os casos comeam a subir muito e o vrus rapidamente para de circular e tudo pode reabrir. Aqui no Brasil fazemos um isolamento meia-boca, que ruim para a sade pblica e para a economia, que tambm fica meia-boca”.
Para Hallal, a poltica mais importante a ser planejada em 2021 a da vacinao, que ele considera a nica forma de alcanar a imunidade de rebanho sem que ocorra uma tragdia em termos de mortalidade. Lotufo concorda e diz estar otimista.
“As vacinas do Instituto Butantan [desenvolvida pela empresa chinesa Sinovac] e do laboratrio AstraZeneca [desenvolvida pela Universidade de Oxford, Reino Unido] tm boa eficcia, so de fcil manuseio e sero produzidas aqui no pas. Se tudo correr bem, poderemos rapidamente vacinar a populao”, opina Lotufo.
Croda acredita que em um primeiro momento no haver dosessuficientes para que a imunidade de rebanho seja alcanada em mbito nacional. Para isso seria necessrio vacinar 80% da populao.
“Contudo, segundo a Organizao Mundial de Sade, possvel reduzir significativamente as internaes e os bitos vacinando os 20% de maior risco. Isso j ser um grande avano”, afirma.