Quando
resolvi fazer o Caminho de Santiago de Compostela parti para uma busca
incansável sobre o assunto. Li diários, livros e ouvi inúmeros depoimentos. A
maioria descreve as dificuldades das etapas, as paisagens e os locais
históricos. Só que nenhum tira a dúvida de quem está indeciso quanto ao meio de
locomoção (e esse era o meu caso): iria a pé ou de bicicleta?
Primeiro
pensei em fazer, a pé, os quase 800 quilômetros que vão dos Pirineus
(cordilheira que separa a França da Espanha) até Santiago de Compostela.
Atravessaria a Espanha de leste a oeste no paralelo 42. Mas depois, resolvi
acompanhar meu marido que preferiu ir de bicicleta. Tudo parecia resolvido.
Passamos meses num preparo físico intenso. Mas pintou outra dúvida: levar as
bicicletas daqui, ou comprá-las na Espanha? Conversei com ciclistas de
carteirinha e a maioria aconselhou-me a levá-las daqui. Foi quando outro livro
sobre o assunto me fez mudar novamente de idéia. Levar as bicicletas
significaria trabalho dobrado, então, decidimos comprá-las na Espanha.
Finalmente embarcamos, mas se o destino iria mudar tudo, só Deus
sabia...
DESEMBARCANDO EM PAMPLONA
As bicicletas reluziam sobre os cavaletes, na elegante bicicletaria
de Don Albero. Senti-me como uma
criança entrando numa loja de brinquedos. Um recorte de jornal fixado na parede
dizia: “Albero faz, de bicicleta, sua 16ª. Visita a Santiago de Compostela”. E
quem veio nos receber? O próprio Albero. Com um eloqüente “vengan” levou-nos ao fundo da loja
apontando para as bicicletas: máquinas em alumínio, com 24 marchas,
amortecedores dianteiros, assentos de gel e mais leves do que meus pensamentos.
Nem acreditei
quando levei a bicicleta para o Hotel. O que eu não imaginava é que, dias
depois, o destino me levaria a cumprir o caminho de uma forma bem diferente da
programada.
1º.
Dia - Transporte das bicicletas até o
início do Caminho em Saint Jean Pied de Port (região Basca francesa).
2º. Dia -
Nosso marco zero foi nessa pequena
vila medieval fortificada à beira do rio Nive. Saint Jean Pied de Port fica nos
Pirineus, fronteira entre França e Espanha. Após trinta quilômetros de
extenuante subida, estávamos em Roncesvalles, onde assistimos à celebração da
missa realizada para abençoar os peregrinos que decidem enfrentar os desafios do
caminho.Vencer os 745 km que separam os Pirineus de Santiago de Compostela é a
principal incerteza dos que se aventuram na rota do Apóstolo.
3ª.
Dia - Burguette é o primeiro povoado
depois de Roncesvalles. É uma charmosa vila onde as casas levam, em sua fachada,
a data da construção. A essas alturas eu já havia me acostumado com os pesados
alforjes adaptados na roda traseira. No início foi mais difícil, porque manter o
equilíbrio numa bicicleta leve, com peso só na roda traseira é dose para
ciclista mais experiente.
4º. Dia - Pela manhã, deixamos a estrada
asfaltada seguindo a indicação da seta amarela, sinalização essa que acompanha o
peregrino até o seu destino final. A trilha acidentada de terra levou-nos a uma
paisagem bucólica de vegetação abundante. Pequenas e frágeis pontes cobrem
pequenos e tímidos riachos. A trilha foi ficando cada vez mais acidentada e
pedregosa.
Depois de um mútuo
acordo, eu e meu marido resolvemos voltar para a estrada de
asfalto.
Nas
imediações da cidade de Pamplona um automóvel em alta velocidade ultrapassou um
veículo que seguia rente a mim.Com o deslocamento de ar perdi o equilíbrio e
rolei para a valeta. O deslize custou-me a fratura do pulso e de um
dedo.
Fui socorrida no Hospital de Pamplona. E agora? Voltaria para casa?
Nem o médico nem meu marido acreditaram quando anunciei minha decisão: só
voltaria depois de receber minha compostelana, o certificado da missão
totalmente cumprida.
5º. Dia -
Passei dois dias em Pamplona em
recuperação, o que me permitiu admirar com mais calma as riquezas medievais da
cidade. Pamplona é a capital da Navarra .De origem romana, foi fundada por
Pompeu. As estreitas ruelas do centro histórico levam às grandiosas edificações
medievais, como a magnífica catedral gótica do século 14 e 15.
No dia
seguinte, estava de volta ao caminho, mas desta vez a pé!
7º.Dia -
Face à nova situação,
resolvi seguir o caminho a pé, enquanto meu marido continuaria de bicicleta.
Mas, para que, no final do dia estivéssemos no mesmo alojamento sem entrar em
conflito com a diferença de tempo entre os dois meios de locomoção, alugamos um
carro de apoio. Nossa rotina diária nos fazia passar três vezes pelo mesmo
trajeto, ou seja: pela manhã saíamos cedo do alojamento: ele de bicicleta e eu
de carro, dirigindo, apenas, com a
mão direita (porque a outra estava engessada). Assim que atingíamos a cidade que
iríamos pernoitar, numa média de 25 a 30 km por dia, (o que ele fazia em 2 ou 3
horas), ele me levava de volta ao local onde havíamos iniciado o trecho daquele
dia, de onde eu partia a pé. Meu percurso diário era de 6 a 8 horas de
caminhada.
8º. Dia -
Logroño é a capital da
Rioja. Fica às margens Erbo, em um fértil vale que abriga uma região vinícola. A
rotina diária das caminhada já estava estabelecida mas, os dedos da mão
engessada inchavam e latejavam de dor. As dores no braço refletiam na alma. E
ela já me perguntava o que eu estava fazendo ali. A essa altura, depois de dias
de muita introspecção, eu já começava a ver a minha vida como um filme em câmara
lenta. O consolo eram as senhoras
que me ofereciam descanso em suas cadeiras nas calçadas, e aqueles que me
estendiam um pedaço de pão. Entendi, então, o que levou São Tiago a enfrentar a
perseguição para continuar pregando o
Evangelho.